São Paulo – A regra que limita o crescimento das despesas federais à inflação é importante para controlar os gastos no curto prazo e para abrir espaço para reformas num horizonte mais longo, porém a manutenção dela pode depender da permanência de Paulo Guedes no comando do Ministério da Economia e da disposição do Congresso em acatar o pedido do governo para gastar à margem do teto de despesas.
Desde 2017, o crescimento de parte do orçamento do governo federal passou a ser limitado à inflação por causa da emenda constitucional 95, aprovada em 2016 e que instituiu o chamado teto de gastos. O objetivo do teto é controlar as despesas primárias – aquelas destinadas ao custeio da máquina pública e que excluem gastos com empréstimos e juros.
O órgão do governo que exceder o limite fica impedido de aumentar salários, contratar pessoal, criar novas despesas ou, no caso do Poder Executivo, conceder incentivos fiscais.
“O teto veio para forçar o governo a repensar o orçamento e as prioridades dentro dele e por isso a discussão do orçamento é tão dura. O teto coloca previsibilidade e limite e isso força discussões sobre onde alocar os recursos e o que é prioridade. O teto força a ideia de que existe um limite e que ele tem que ser respeitado, e por isso ele é muito importante”, disse Fábio Klein, especialista em Finanças públicas da Tendências Consultoria.
A emenda constitucional prevê que a partir de 2027 as regras de limitação nas despesas podem ser alteradas pelo presidente uma vez a cada mandato, mas pelo menos desde julho Planalto e Congresso indicaram que estudavam formas de ou revisar antecipadamente estes critérios ou de contornar as limitações impostas pelo teto de gastos.
Estas hipóteses se dissiparam temporariamente com a divulgação, na segunda-feira, da proposta de orçamento para 2021 apresentada pelo Planalto. O documento indicou que a intenção do Executivo é adiar o debate sobre potenciais mudanças solicitando créditos extraordinários ao Congresso.
A legislação atual exclui estes créditos extraordinários dos gastos limitados pelo teto porque às vezes pode ser necessário gastar mais do que se previu no orçamento. O exemplo mais claro disso é a pandemia de covid-19 neste ano, que exigiu da União um esforço financeiro muito maior que o originalmente projetado de forma a garantir tratamento médico e auxílios em dinheiro à população.
Os investidores, porém, temem que esse expediente seja usado para ampliar os gastos públicos numa situação menos excepcional, na prática burlando o objetivo do teto de gastos, que é conter o aumento das despesas e, consequentemente, da dívida pública. Em julho, por exemplo, surgiram notícias de que a Casa Civil teria consultado o Tribunal de Contas da União (TCU) a respeito da possibilidade de financiar obras usando créditos extraordinários.
“Quando foi criado, o teto de gastos fez as despesas primarias serem congeladas em termos financeiros, ela seria ajustada pela inflação. Então nos primeiros anos o problema não foi tão grande, já que não tinha pandemia e a inflação era alta”, disse Rachel Sá, economista da XP investimentos.
“Existe pressão para continuar com esse gasto mais alto no ano que vem, só que não existe mais espaço no orçamento. O orçamento de guerra é um orçamento separado e dá licença para o governo gastar, porque as regras fiscais não estão vigentes, a regra de ouro não está vigente, mas no próximo ano estarão”, acrescentou.
No mês passado, a Instituição Fiscal Independente do Senado afirmou que incluir investimentos em infraestrutura entre as despesas viabilizadas com créditos extraordinários “seria questionável” por vários motivos, entre eles a criação de despesas permanentes com manutenção das novas estruturas e a falta de relação destas obras com a situação excepcional de calamidade pública por causa da covid-19.
“É certo que dispositivos constitucionais são sempre passíveis de interpretação. Também é certo que o TCU tem competência para decidir sobre consultas a respeito da aplicação de dispositivos legais dentro da sua esfera de competência. Contudo, na área fiscal, as aparências importam”, disse o órgão.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, concorda com a avaliação da IFI e tem se manifestado publicamente em defesa da manutenção do teto de gastos, que ele classificou em mais de uma ocasião como sendo uma ferramenta que dá “aparência de seriedade” à gestão do orçamento público, pois controla o ímpeto do governo para aumentar despesas, mas não resolve outro problema estrutural da política fiscal, que é o aumento dos gastos obrigatórios.
CASA PEQUENA
Guedes tem dito que antes de se debruçar sobre o teto de gastos é preciso primeiro lidar com o “piso” – ou seja, conter o crescimento das despesas obrigatórias – e trabalhar um pouco nas “paredes” – aprovar reformas que permitam um gerenciamento mais amplo do orçamento e que abram espaço para investimentos do setor privado. Sem isso, o espaço na casa ficará cada vez menor, e a opção remanescente será quebrar o telhado.
A insistência do ministro em preservar a regra do teto de gastos reside no fato de que, por enquanto, esta é a única âncora em vigor na política fiscal. As agências de classificação de risco, que indicam ao mercado se é seguro emprestar dinheiro a empresas e países, são unânimes em dizer que remover ou afrouxar o teto agora contribuiria para uma nota de crédito menor para o Brasil.
Isto deixaria o governo vulnerável, porque elevaria o custo de financiamento da dívida, que por sua vez está crescendo rápido em função das despesas com a crise trazida pela pandemia de covid-19 – os dados mais recentes do Banco Central mostram que em julho a dívida líquida do setor público, que considera os passivos e os ativos do governo, atingiu 60,2% do Produto Interno Bruto, ou 2,2 pontos porcentuais maior em comparação a junho.
O economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, afirma que o teto de gastos é “fundamental” para ancorar as expectativas dos investidores sobre a trajetória da dívida no longo prazo. “Estamos vendo o mercado reagir de forma negativa em relação a qualquer que seja a discussão [sobre o teto de gastos], seja postergação, ruptura, flexibilização.”
Ele acredita que o governo pode manter a regra do teto de gastos como está hoje – caminho mais provável, dado o pedido de crédito extraordinário incluído na proposta de orçamento de 2021 e a insistência da equipe econômica em primeiro debater reformas em outras áreas – ou optar por uma mudança radical nos critérios.
Agostini acrescentou que, se o governo decidir pela ruptura, “tende a estourar teto dos gastos a partir do ano que vem, mudar as regras e dar mais flexibilidade” ao limite de despesas. “Mas esses dois cenários, por enquanto, ainda estão relacionados ao fator Paulo Guedes. Tem acontecido uma fritura pública por parte do presidente, principalmente agora com o Renda Brasil”, afirmou.
RISCO NO CONGRESSO
O Renda Brasil é um programa que está sendo desenhado pela equipe econômica do Planalto e cujo objetivo é reunir vários benefícios sociais distribuídos hoje pelo governo federal em uma frente única, direcionada à população mais pobre e à proteção da primeira infância, e com mecanismos para que as pessoas que receberem o auxílio possam ingressar formalmente no mercado de trabalho.
A proposta inicial da equipe de Guedes, porém, desagradou o presidente Jair Bolsonaro porque envolvia realocação de recursos como o do abono salarial – pago anualmente a quem ganha até dois salários mínimos.
O ministro disse ontem que o programa vai ser reformulado, e no Congresso há pressão para que haja mais desembolsos da União em programas de auxílio no ano que vem para lidar com efeitos econômicos remanescentes da pandemia de covid-19.
É o Congresso, também, que vai revisar o plano de orçamento apresentado pelo Planalto, e durante este processo existe o risco de mais despesas serem incluídas à margem do teto de gastos. A consultoria Eurasia aponta que o governo provavelmente negociará uma minirreforma fiscal em troca de mais despesas extra-teto em 2021.
Um levantamento feito pela XP aponta que há três cenários possíveis para o Renda Brasil a partir de agora. A primeira opção seria encolher o programa para ele caber no orçamento, algo pouco atraente do ponto de vista político porque deixará sem assistência um número grande de pessoas que ficaram sem renda durante a crise.
A segunda seria encontrar fontes de financiamento que não sejam programas como o abono salarial, e o terceiro seria justamente criar alguma exceção que retire as despesas do programa do limite aplicado pelo teto de gastos – alternativa que geraria desconforto na equipe econômica
REFORMA NO TELHADO
Os especialistas ouvidos pela Agência CMA apontaram que o mercado deve reagir negativamente a qualquer tentativa por parte do governo de burlar ou contornar os critérios do teto de gastos para despesas consideradas não essenciais.
“Estamos em um momento em que o déficit primário vai chegar a 15% do PIB, a inflação está sob controle, os juros baixos, o dólar não explodiu e a bolsa não despencou e isso aconteceu porque o Brasil teve ganhos de credibilidade fiscal com a aprovação do teto e da reforma da previdência e a mudança na TJLP, além de uma série de mudanças na própria comunicação do BC”, disse Sá, da XP investimentos.
“O teto funciona como um bastião e tudo isso. Discutir a flexibilização é passar uma mensagem de que não vamos mais seguir essa linha de política econômica e sim uma linha de gastos semelhante a que foi feita após a crise de 2008, quando foram usadas medidas anticíclicas no momento que se passou por um boom de commodities”, acrescentou.
Agostini aponta que o pior da atual crise já passou e que a reação dos investidores à falta de compromisso com o ajuste fiscal pode resultar em “taxa de câmbio disparando, bolsa voltando abaixo de 100 mil pontos, juros futuros disparando. Tudo isso tem efeitos negativos para a própria recuperação [da economia].”
O desalinho com o aperto fiscal também exigiria ação ostensiva do Banco Central (BC), que atrelou a manutenção de juros baixos a uma trajetória sustentável para os gastos e a dívida pública.
“A ação do BC seria atuar no mercado futuro, tentando reduzir a taxa de juros futuro, fazendo operações de swap, tentando mudar composição das operações de mercado para segurar a curva de juros futuro dando liquidez”, disse Agostini, acrescentando que a instituição também teria que aumentar a Selic “para sinalizar que o BC não compactuaria com essa desordem fiscal”.
“Se o governo quiser alterar qualquer regra do jogo nessa área a situação fica muito difícil e vamos acabar tendo um retrocesso nesse processo de recuperação da economia, diferente do que pensa o governo, de que quanto mais ele gastar, mais vai estimular a atividade econômica. É o contrário”, afirmou o economista.
Klein, da Tendências, ressalta que o rompimento do teto em si é um problema menor, porque a própria legislação prevê esta hipótese e os remédios que devem ser adotados nestes casos. A turbulência viria do lado político.
“O problema do teto não é o rompimento em si, porque já está previsto o rompimento e caso isso ocorra o governo tem que cumprir cestas restrições, um gatilho que uma vez rompido, o governo fica impedido constitucionalmente de aumentar certas despesas. O problema é ter a capacidade de cumprir as vedações e impedimentos oriundos disso.”