São Paulo – A aprovação do projeto de lei (PL) 1.166/2020, que propõe o tabelamento dos juros e do cheque especial pelo Senado, no início de agosto, aumentou a apreensão do mercado em relação à intervenção do governo nas atividades dos bancos. A medida ainda depende de aprovação da Câmara dos Deputados, mas, até o momento, o presidente Rodrigo Maia não demonstrou interesse em pautar o projeto.
Especialistas consultados pela Agência CMA afirmam que o tema adiciona uma pressão extra à negociação dos papéis das instituições financeiras, que já vem sofrendo com outros impactos à rentabilidade, como, por exemplo, o aumento das provisões, mas deve caminhar para a autorregulamentação.
O projeto limita em 30% ao ano (aa) os juros cobrados pelos bancos, e em 35% para fintechs, operações com cartão de crédito e cheque especial. A medida vale para operações de crédito contratadas durante o período de calamidade desencadeada pela pandemia do novo coronavírus, que a princípio vai até 31 de dezembro.
A proposta do senador Alvaro Dias (Podemos-PR) foi apresentada em março e recebeu uma emenda que abre espaço para o tabelamento permanente dos juros em operações de crédito com cartões, após o período de calamidade pública, no próximo ano. Ela prevê que o Conselho Monetário Nacional (CMN) regule o limite de juros no cartão, assim como fez com o cheque especial.
“Ninguém pode forçar um banco privado a tabelar juros. Além disso, a proposta cria dois mundos, o dos bancos e o das fintechs. Você não pode criar diferença dentro do mesmo mercado”, afirma o professor de Economia e Finanças Corporativas do Ibmec, Walter Franco, que vê no projeto uma oportunidade para fomentar um debate sobre a redução de juros.
Para o professor, “se essa proposta, que não vai e não deve ser aprovada, fomentar, no sentido de pensarmos maneiras de barateamento do crédito na ponta tomadora no Brasil, eu acho que pode ser benéfico”.
Adriana Fornereto/CMANo caso do cheque especial, já existe hoje uma limitação, feita pelo Banco Central (BC) de até 8% ao mês (151,82% ao ano). Em abril de 2017, começou a valer a regra que obriga os bancos a transferir, após um mês, a dívida do rotativo do cartão para o parcelado, com juros mais baixos. A intenção do governo com a nova regra era permitir que a taxa de juros do cartão recuasse, já que o risco de inadimplência, em tese, cai com a migração para o parcelado.
“O sinal que o Senado mandou é “olha, a sociedade não aceita mais os dois modelos que existem no Brasil, tanto do cheque especial, tanto do cartão de crédito, e nós precisamos construir uma solução. E quem precisa construir a solução é o mercado. Eu acho que uma autorregulação do mercado é muito mais importante do que uma intervenção do governo brasileiro, do parlamento brasileiro nesses temas”, afirmou Rodrigo Maia, durante uma live do Santander.
Um dos pontos questionados pelo próprio deputado na cobrança de juros do cartão de crédito é a existência do parcelamento sem juros, que representa mais de 55% do volume transacionado, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs).
No segundo trimestre do ano, o valor transacionado no cartão de crédito foi de R$ 242,7 bilhões, uma queda de 11,9% em relação ao mesmo período de 2019. A Abecs atribui o resultado à retração de setores em que essa modalidade de pagamento tem grande participação, como serviços, eletroeletrônicos e informática, turismo e entretenimento, dentre outros.
“No Brasil, a taxa de juros do cartão de crédito é composta pelo parcelado sem juros. Tudo que é parcelado tem juros, isso é óbvio. Só que quando você tem toda uma cadeia do comércio vivendo de parcelado sem juros, o resto dos clientes do cartão de crédito pagam a conta dos juros enormes do cheque especial. Isso vai ter que ter uma solução e o setor de comércio também vai ter que se manifestar nesse debate”, analisou Maia.
CRÉDITO
Em julho, dados do Banco Central (BC) mostram que o total transacionado em todas as modalidades do cartão de crédito foi de R$ 255,8 bilhões, enquanto nos sete meses do ano esse valor foi de R$ 1,854 trilhão.
Para pessoa física, o total de empréstimos no cartão de crédito em julho foi de R$ 243,9 bilhões, com taxa de juros média de 68,6% ao ano (aa). Por modalidades, o maior saldo foi de crédito à vista, de R$ 177,5 bilhões, seguido por rotativo, de R$ 41,90 bilhões, com taxa de juros média de 312,0% aa, e parcelado, de R$ 24,49 bilhões e taxa de juros média 131,8% aa. De janeiro a julho, o total de empréstimos para pessoa física foi de R$ 1,771 trilhão, queda de 13,6% no ano.
Já o total transacionado nos cartões de crédito para pessoa jurídica em julho foi R$ 11,52 bilhões, com taxa de juros média de 33,1% aa. Por modalidade, o maior volume de empréstimos foi à vista, de R$ 8,340 bilhões, seguido por R$ 3,176 bilhões às operações de crédito rotativo, parceladas com juros e saques na função crédito. As taxas de juros médias foram de 132,6% no rotativo e 105,0% no parcelado para pessoa física. Nos sete meses do ano, o saldo total de crédito pessoa física ficou em R$ 83,17 bilhões, uma retração de 15,5% no ano.
O montante total liberado à linha de crédito cheque especial alcançou R$ 27 bilhões em julho, dos quais R$ 20,23 bilhões para pessoa física, a uma taxa de juros média de 112,7% aa, e R$ 6,776 bilhões para pessoa jurídica, com taxa de 295,2% ao ano. No semestre, os saldos nessa modalidade foram de R$ 166,9 bilhões para pessoa física e R$ 65,82 bilhões para jurídica, com quedas de 16,27% e 29,6%, respectivamente. De janeiro a julho, o total de empréstimos no cheque especial totalizou saldo de R$ 232 bilhões.
Em julho, o índice de inadimplência no cheque especial esteve em 22,6% para a pessoa jurídica e 16,4% para pessoa física. No cartão de crédito, esse indicador chegou a 4,8% para pessoa jurídica, enquanto para pessoa física ficou em 39,6% no rotativo, 5,8% no parcelado e 7,4% no total.
RISCOS
Um relatório da XP Investimentos, divulgado logo após a aprovação pelo Senado, avaliou que, o projeto provavelmente destruiria o valor nos segmentos, pois causaria impacto nos juros em relação ao valor médio cobrado pelos bancos, no saldo de empréstimos e destruiria o valor das empresas, já que os bancos teriam um retorno de 30% sobre esses segmentos.
No entanto, a corretora acha difícil que o projeto seja aprovado pelo Congresso e pelo presidente Jair Bolsonaro em caso de votação favorável na Câmara.
Para a analista da Guide Investimentos, Carolina Casseb, a medida pode acabar pressionando os papéis na Bolsa, que já estão em patamares relativamente atrasados, quando observamos o restante dos setores negociados na B3.
“Os resultados do segundo trimestre divulgados pelas instituições já impactou negativamente o desempenho das ações dos principais bancos listados, e a cena política vem contribuindo ainda mais para este mesmo movimento”, diz Casseb
Em relação à inadimplência nos bancos, o estrategista chefe da Levante Investimentos, Rafael Bevilacqua, faz um alerta. Para ele, o grande ponto não é limitar a taxa.
“Se olhar para os bancos, o retorno deles é de 15%, 20% ao ano, em momentos normais, e agora, é 12%, 13%. Ou seja, eles não ganham aquele absurdo que as pessoas veem. Um ponto importante é que a inadimplência é alta no Brasil. Os quatro maiores bancos, nesse trimestre, provisionaram R$ 25 bilhões juntos, ou seja, se anualizar, estamos falando de R$ 100 bilhões de provisão, é altíssimo”, diz Bevilacqua.
Segundo ele, o verdadeiro ponto é que se [o projeto] achatar demais a taxa de juros nessa linha de crédito os bancos não vão entrar para perder dinheiro. “Não tem como dar crédito perdendo dinheiro. Várias fintechs entraram no Brasil, quiseram dar crédito com juros extremamente baixo, abaixo do que os bancos dão, achando que eles eram os vilões, e quebraram. Ou seja, ou o mercado acaba ou ele se reinventa”.
Como forma de atenuar isso, o estrategista chefe da Levante Investimentos explica que os bancos podem começar a pedir garantias reais, como imóvel, depósito na conta ou automóvel. “O grande ponto do Brasil está em melhorar a estrutura jurídica. Se tiver uma estrutura jurídica de retomar garantia rápido, ter uma execução rápida, isso derruba os spreads rapidamente”.
Por outro lado, o analista de investimentos da Mirae Asset, Pedro Galdi vê um impacto temporário. “A mudança vai afetar o setor bancário, que tinha nestes produtos os maiores retornos, mas também o maior nível de inadimplência de clientes. Minha visão é que (a medida) afeta os bancos no curto prazo”.
Em 2020, os papéis dos bancos registraram quedas expressivas e dificuldades de se recuperarem depois de os balanços terem mostrando aumento das provisões, entre outros fatores, como as possíveis mudanças na legislação.
“Em 2021, se tiverem crescimento, o papel (dos bancos) começa a andar.
Mas a dinâmica dos bancos é ruim, tem Selic baixa, pressão regulatória, limitação da taxa de juros do cheque especial no começo do ano, aumento de imposto. Então será preciso monitorar se haverá melhoria neste cenário”, afirmou o analista chefe do setor financeiro da Genial Investimentos, Eduardo Nishio, em vídeo gravado uma semana antes do resultado da votação do projeto no Senado.
OUTRO LADO
Para os defensores do projeto, um dos argumentos é que o rotativo do cartão e o cheque especial costumam ser muito acessadas em momentos de dificuldades, como modalidades de crédito emergencial. E, durante à pandemia, por conta de redução de rendimentos, poderiam ser beneficiadas com a redução das taxas nesse período. No entanto, a principal crítica ao tabelamento é que ele irá restringir ainda mais o crédito.
A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) concorda com a necessidade de reduzir o custo do crédito, mas entende que o tabelamento, ao invés de promover alívio financeiro, pode agravar à crise por distorcer a formação de preços, criar gargalos e gerar insegurança jurídica.
De acordo com a entidade, os bancos associados estão sensíveis em adotar medidas para beneficiar aqueles que se encontram em situação financeira fragilizada, mas entende que propostas que interferem nos contratos privados não seria o melhor caminho.
“Projetos de tabelamento, se aprovados, produzirão, sob a ótica do preço dos serviços financeiros, efeitos econômicos negativos, além do enorme potencial de gerar dano à imagem do país, ao ambiente de negócios e ao apetite por investimentos. É importante que os bancos continuem saudáveis, não só agora, mas, principalmente, no futuro, para que possamos ajudar na retomada econômica”, disse em nota.
A Abecs, que vai na mesma linha, “entende que qualquer tipo de tabelamento de preços tende a ter impacto na estrutura de custos do setor, gerando efeitos negativos à sociedade, como redução da oferta de crédito, involução no processo de inclusão financeira, limitação da expansão dos meios digitais e do desenvolvimento de inovações que garantem mais eficiência e segurança às transações, entre outros”.
O economista-chefe e diretor de risco & compliance da Reach Capital, Igor Barenboim, alerta que além de limitar a quantidade de capital disponível no mercado, o tabelamento pode ser questionado juridicamente. “Acho que o projeto caminha para uma negociação. Tem muitas soluções que podem ser construídas a quatro mãos. O parcelamento sem juros, por exemplo, é algo que pode ser discutido, porque é um crédito que financia o lojista, mas é ineficiente do ponto de vista de alocação de capital de banco”.
Edição: Leandro Tavares (leandro.tavares@cma.com.br)