Com crédito mais caro e restrito, investidor mira endividamento das empresas à espera de alívio fiscal

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São Paulo – As inconsistências contábeis bilionárias da Americanas, a crise da companhia de energia Light, somadas à manutenção da taxa básica de juros em patamar elevado por aqui, e eventos bancários recentes nos Estados Unidos e Europa, como a falência do Silicon Valley Bank (SVB) e problemas no Credit Suisse, fizeram crescer o temor de restrição no mercado de crédito e desconfiança sobre a capacidade de pagamento das empresas no Brasil.

No entanto, especialistas apontam que, apesar do atual cenário de contração da oferta e maior endividamento, as empresas listadas na Bolsa ainda estão saudáveis e o setor financeiro local está fortalecido para enfrentar turbulências. O investidor deve ficar atento à alavancagem das companhias e aos reflexos no setor financeiro enquanto aguardam por uma redução nos juros que possa suavizar os impactos do crédito mais caro.

As empresas que mais sofrem são, naturalmente, as mais endividadas e os setores mais sensíveis à performance da economia interna, como o mercado imobiliário, varejo, setor aéreo e de tecnologia. Os juros elevados fizeram o custo do capital aumentar, refletindo diretamente na alavancagem das empresas, que precisam manter seus pagamentos em dia para continuar a ter um perfil seguro aos olhos das instituições que oferecem crédito na praça.

Para o economista responsável pela área de dados econômicos do TradeMap, Murilo Giovaneli, o crédito caro tem impacto nas rolagens e renovações de empréstimos e faz a inadimplência crescer, causando um efeito sistêmico nas cadeias de mercado. Já existe uma desaceleração de crédito no país. Dados divulgados no fim de março pelo Banco Central do Brasil mostraram que o saldo de crédito caiu 0,1% em fevereiro, encerrando o mês em R$ 5,3 trilhões. A última vez que o estoque de crédito caiu por dois meses seguidos foi em janeiro e fevereiro de 2018, quando, apesar de o país estar em ciclo de corte de juros, o mercado ainda sofria impacto do período de contenção monetária anterior, explicou Giovaneli.

Murilo Giovaneli, economista da área de dados econômicos do TradeMap. Foto: Divulgação/ TradeMap

O economista da TradeMap salientou que as empresas com endividamento elevado e as empresas mais sensíveis à economia interna, como as de varejo, construção civil, educação e as de tecnologia, são as mais afetadas por esse cenário. Filtrando as empresas do Ibovespa e olhando o indicador de alavancagem financeira, medido pela relação entre a dívida líquida sobre o ebitda em 2022, vemos que seis empresas apresentam o indicador acima de 5, indicando um alto grau de alavancagem. São elas: Embraer, Eneva, MRV, Azul, BRF e Gol.

Já as empresas mais bem estruturadas nesse quesito, são aquelas que não apresentam dívida líquida e sim caixa líquido, que é o caso da Ambev, Aliansce Sonae, Locaweb e CSN Mineração, destacou a TradeMap.

Sem crise

No entanto, a XP Investimentos aponta que as companhias listadas na Bolsa conseguem “passar tranquilas por uma crise de crédito”, segundo Camila Dolle, head research de renda fixa da XP Investimentos, citando um estudo feito pela corretora com base na média da alavancagem dessas empresas do Ibovespa e com seus resultados comparados com 2015, época da crise no Brasil. “A gente não tem o resultado delas para o 1T23, que foi quando teve o aumento da percepção de risco de crédito; na média, elas estão com uma alavancagem mais baixa, então daria uma maior flexibilidade financeira para passarem por uma eventual crise que pudesse acontecer. Mas a gente não tem visibilidade para as empresas neste ano”, ressaltou.

Camila Dolle, head research de renda fixa da XP Investimentos. Foto: Divulgação/XP.

A head research de renda fixa da XP Investimentos disse que a crise de crédito é mais forte para empresas pequenas e médias e para pessoas físicas e famílias. “As empresas grandes e com qualidade de crédito conseguem refinanciar suas dívidas e acessar novos créditos”.

Para esse estudo, a XP utilizou indicadores para análise de crédito, como a alavancagem, medida pela relação dívida líquida sobre ebitda, e cobertura de juros calculada como ebtida sobre despesa financeira. “As empresas que acessam o mercado estão com métricas mais confortáveis do que em 2015, ano em que tivemos crise no Brasil, isso se deve aos elevados números de emissões vistos em 2021 e 2022, que permitiram alongamento das dívidas em taxas mais baixas em boa parte delas, afirma Dolle.

Outro indicador importante a ser analisado para quem quer investir no mercado de ações é a dívida líquida, que é uma referência para verificar a alavancagem e a saúde financeira da empresa.”A liquidez da empresa é importante, ou seja, o quanto ela tem de caixa em relação à dívida de curto prazo; qual o risco de refinanciamento e se ela tem muita dívida para vencer no curto prazo, como ela vai pagá-la, será necessário recorrer ao mercado para fazer o refinanciamento? Tudo isso é muito importante na hora de fazer análise de crédito”, reforçou.

Para o analista de investimentos Pedro Galdi, da Mirae Asset, o país não está passando por uma crise de crédito, pois não há risco sistêmico. Ele lembrou que os bancos sempre lançam provisões para inadimplência. No quarto trimestre de 2022, os bancos tiveram que reconhecer Americanas com uma provisão mais forte. Com isto, a oferta de crédito com garantia está se tornando mais comum, mas não falta crédito no mercado, explicou Galdi, que destacou ainda que a melhora na situação do crédito só virá com a queda nos juros e os efeitos positivos na economia com o arcabouço fiscal e a reforma tributária.

O crédito já vem sendo restritivo já algum tempo. Muitas empresas ficaram machucadas com a pandemia e agora com juros elevados a situação piorou, vide o caso Americanas e outras varejistas que estão endividadas, levando os bancos a serem mais seletivos, apontou Galdi.

Galdi ressaltou ainda que o setor aéreo tem muito endividamento em leasing de aviões, e que na época da pandemia, a receita secou e as companhias tinham os custos com aviões em terra (praticamente dois anos). Com a alta do juro e do dólar, as dívidas atingiram patamares elevados.

Redução dos juros

Olhando para o cenário macroeconômico, o economista da TradeMap, Murilo Giovaneli, destaca que o arcabouço fiscal tem a missão de passar confiança aos agentes econômicos e, assim, refletir nas análises realizadas pelo Banco Central em relação à responsabilidade do governo com as contas públicas e a política fiscal. Caso seja aprovado pelo Congresso, a tendência é de abrir caminho para uma redução na taxa de juros, mas não no curto prazo, pois será preciso experimentar uma fase inicial de operacionalização desse novo modelo, até se tornar crível de fato, através de resultados práticos, ponderou Giovaneli.

O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, vê como positiva a iniciativa da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda de trazer medidas voltadas para solução de problemas observados no mercado de crédito brasileiro, entre elas, a redução da assimetria de informações entre os tomadores de crédito e credores (proposta de compartilhamento das informações do Imposto de Renda) e a recuperação de garantias (Marco de Garantias e Execução de Dívidas). As medidas anunciadas, uma vez implementadas, serão um reforço importante para redução das taxas de juros cobradas no país, que ainda são elevadas e atrapalham o desenvolvimento do mercado de crédito. Isso decorre principalmente dos altos custos de intermediação financeira. Aproximadamente 80% da composição do spread bancário decorre dos custos de intermediação, enquanto a margem financeira das instituições representa apenas 20%, segundo o Banco Central”, ponderou o presidente da Febraban.

Por fim, o presidente da Febraban afirmou que o mercado de crédito no Brasil possui amplo espaço para aperfeiçoamento, o que permitiria maior penetração das operações de crédito entre os diversos segmentos da economia. “A relação crédito bancário/PIB, na faixa de 54%, ainda é baixa para os padrões internacionais, especialmente comparando com os países desenvolvidos, cuja razão crédito/PIB na maioria dos casos ultrapassa 100%, destacou.

Reflexo para os bancos brasileiros

O economista da TradeMap vê os bancos como um dos setores menos afetados pelo aperto fiscal e que podem até se beneficiar dos juros mais elevados, pois, apesar do aumento da inadimplência, conseguem repassar a alta dos juros para o cliente de maneira imediata. Nesse cenário, as ações preferenciais do Itaú Unibanco se destacam, segundo o consenso TradeMap, pois todas as 14 recomendações são de compra e seu potencial de valorização médio é de 35%, considerando o preço do papel no dia 30 de março.

A head research de renda fixa da XP Investimentos, Camila Dolle,assegura que apesar da recente crise bancária nos Estados Unidos e Europa, a situação por aqui é mais confortável, porque os bancos locais são mais capitalizados. Não nos preocupa a disponibilidade dos bancos para oferecer crédito. Já a capacidade de devedores mais arriscados conseguirem crédito é menor, pondera. As empresas maiores, boas pagadoras, têm mais facilidade para acessar créditos, enquanto empresas menores, com perfil de risco maior, vão ter maior dificuldade para acessar esses créditos dos bancos, mas a capacidade dos bancos continua boa.

Reportagem de Soraia Budaibes e Emerson Lopes.

Edição: Cynara Escobar / Agência CMA.