Covid-19 seguirá crescendo no Brasil por isolamento ineficaz

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São Paulo – O número de pessoas contaminadas com a covid-19 e o total de mortos pela doença devem continuar a crescer no Brasil porque o isolamento social aplicado até agora tem sido ineficaz e a população ainda está longe de atingir a chamada imunidade coletiva – quando as defesas antivirais da população atingem um nível grande o suficiente para diminuir o número de casos.

O covid-19 chegou ao Brasil oficialmente no final de fevereiro e, até terça-feira, havia infectado 271.628 pessoas e matado 17.971. Na prática, no entanto, várias pesquisas indicam que estes números podem ser maiores e alguns estudos apontam que a doença começou a circular por aqui e em outros países algumas semanas antes de ser detectada pelas autoridades.

O próprio governo reconhece que o número oficial de pessoas contaminadas e mortas pela covid-19 é maior, tanto por causa da escassez de testes quanto por atrasos na notificação dos casos, mas usa as informações disponíveis para desenhar as políticas públicas de combate à pandemia, que atinge o Brasil de forma desigual.

São Paulo é o estado com maior número de casos e de mortes – 65.995 e 5.147, respectivamente, enquanto em Mato Grosso do Sul houve 642 casos notificados e 16 mortes pelo novo coronavírus – o causador da covid-19. No Amazonas, o número de doentes e de mortos – 22.132 e 1.491, nesta ordem – é relativamente baixo comparando a São Paulo, mas a situação é mais grave.

Os paulistas ainda possuem cerca de 30% dos leitos de UTI de hospitais públicos voltados ao tratamento da covid-19 disponíveis para o tratamento da população (12% considerando apenas a capital do estado e cidades vizinhas), enquanto os amazonenses operavam perto do limite do sistema hospitalar local até o final da semana passada, quando houve ampliação no número de leitos. Não por acaso, o índice de mortalidade por covid-19 a cada 100 mil habitantes no Amazonas é de 36 pessoas, mais que o triplo do observado em São Paulo.

Na tentativa de impedir uma disseminação muito rápida do novo coronavírus e a superlotação de hospitais, vários estados adotaram medidas para restringir o funcionamento do comércio e aumentar o distanciamento entre as pessoas. Em alguns deles as medidas foram mais restritivas – como no Ceará, que vetou a circulação injustificada de veículos em Fortaleza.

As medidas ajudaram a mitigar a demanda por serviços de saúde, mas não diminuíram o ritmo de contágio da covid-19 para níveis capazes de coibir a doença. Em 8 de maio, um estudo do Imperial College London disse que no início da epidemia no Brasil um indivíduo infectado contaminava em média três a quatro outras pessoas, mas após a adoção de medidas como o fechamento de escolas e a redução da mobilidade da população essa taxa caiu. Ainda assim, cada pessoa contaminada à época continuava infectando no mínimo mais uma pessoa.

“O número de reprodução acima de um significa que a epidemia ainda não está sob controle e continuará a crescer”, diz o estudo. “Essa tendência contrasta com outros importantes focos da epidemia de covid-19 na Europa e Ásia, onde lockdowns obtiveram sucesso em reduzir o número reprodutivo para abaixo de um.” “Embora em escala nacional a epidemia brasileira ainda seja relativamente inicial, nossos resultados sugerem que mais ações são necessárias para limitar a disseminação e prevenir sobrecarga do sistema de saúde”, acrescenta o estudo.

Desde a publicação da pesquisa, o esforço dos governos contra a covid-19 se concentrou sobre o aumento da capacidade de atendimento à população, sem o anúncio de ações mais restritivas à circulação de pessoas, como o lockdown, e os casos no Brasil aumentaram 86,7%, enquanto as mortes cresceram 81,6%.

“Estamos perdendo essa batalha contra o vírus. Esta é a realidade, o vírus neste momento está vencendo a guerra“, disse o presidente do Instituto Butantan e coordenador do grupo técnico que avalia a pandemia no estado de São Paulo, Dimas Covas, durante uma entrevista coletiva na terça-feira.

IMUNIDADE COLETIVA

A alternativa ao lockdown, adotado com sucesso pela Itália, a China e outros países como estratégia para inverter a curva de contaminação da covid-19, seria o afrouxamento das regras de distanciamento social – seja isolando apenas as pessoas que fazem parte do grupo de risco ou eliminando totalmente as restrições à circulação e ao funcionamento da economia.

Este tipo de abertura poderia levar a um aumento rápido e significativo no número de pessoas infectadas e, consequentemente, no total de vítimas da covid-19, a não ser que a população possuísse um grau razoável de imunidade contra o coronavírus.

Pesquisadores estimam que essa imunidade coletiva ocorre quando de 40% a 70% das pessoas possuem anticorpos capazes de combater a doença, mas vários estudos apontam que ainda não houve contaminação suficiente para gerar este nível de resistência na população.

Um destes estudos, apoiado pelo governo, é capitaneado pela Universidade Federal de Pelotas. Ela conduz pesquisas desde meados de abril no Rio Grande do Sul para identificar o porcentual de pessoas que têm defesas contra o novo coronavírus no organismo.

Na terceira e mais recente etapa dos estudos, 0,22% das pessoas testadas apresentaram resultado positivo. Na testagem anterior, realizada no último fim de semana de abril, o índice era de 0,13%. No primeiro levantamento, há pouco mais de um mês, foi de 0,05%.

O mesmo estudo começou a ser aplicado em escala nacional na semana passada, para obter resultados mais fiéis à realidade de cada região, visto que o Rio Grande do Sul tem bem menos relatos de covid-19 do que outros estados – até terça-feira eram 3.750 casos confirmados.

NÚMERO DE INFECTADOS

Alguns levantamentos feitos por universidades apontam que, na prática, o número de casos de covid-19 é bem maior do que o oficialmente reportado. Com isso, seria possível extrapolar os resultados da pesquisa sobre os anticorpos na população para verificar se, em termos absolutos, haveria margem em algumas regiões e faixas etárias para diminuir as restrições à circulação – isso, é claro, partindo da premissa de que, uma vez infectada, a pessoa está livre do novo coronavírus, algo que ainda não tem comprovação científica.

Dois grupos diferentes, um liderado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto e outro pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, calculam o número de casos confirmados de covid-19 no Brasil como sendo mais de dez vezes maior que o oficial.

A conta é feita levando em consideração o índice de letalidade da doença, que no Brasil é maior do que o observado em outras regiões. Os pesquisadores calculam quantas pessoas precisariam estar doentes por aqui para a taxa de letalidade se enquadrar nos padrões internacionais e ajustam o número de casos de acordo.

Para o grupo da USP, haveria no mínimo 2,825 milhões de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus em todo o Brasil, ou 10,4 vezes mais que o número divulgado pelo Ministério da Saúde. Para o grupo da PUC-Rio, o total seria de 2,984 milhões de infecções, ou praticamente 11 vezes mais que a estimativa oficial.

Um outro levantamento, feito pelo Imperial College London, também calcula o número de contaminados com base nos relatos de mortes provocadas pela doença, modulando o resultado a partir da eficácia das medidas de isolamento social adotadas em cada região. Nesta estimativa, os casos no Brasil passam de 3 milhões. Ainda assim o número também é baixo demais para considerar que a população pode circular pelas ruas com menos restrições por causa da imunidade coletiva.

EFEITOS COLATERAIS

A pandemia da covid-19, isoladamente, provoca problemas econômicos ao aumentar o número de pessoas que precisam ter acesso a tratamento médico, exigir mais gastos públicos para evitar sobrecarregar o sistema de saúde e reduzir temporariamente o número de pessoas com condições de trabalhar.

A isso somam-se as iniciativas tomadas pelas autoridades públicas para tentar diminuir a circulação de pessoas nas ruas – como restrições ao funcionamento do comércio e de serviços não essenciais, por exemplo. O antídoto para este efeito colateral da covid-19, porém, segue tão longe de ser aplicado quanto a vacina contra a doença.

“O isolamento social é inevitável, é o cuidado do ponto de vista exatamente da saúde, sobrevivência física. Por outro lado, é inegável que começa uma desarticulação da economia”, disse o ministro Paulo Guedes durante uma teleconferência no final de abril.

O governo federal adotou várias medidas para mitigar os efeitos nocivos da pandemia sobre a economia. Desde o início do surto, foi aprovado um orçamento de R$ 258,5 bilhões para custear medidas desenhadas especificamente ao combate à crise, e foram desembolsados R$ 88,0 bilhões deste total.

O maior programa dessa lista é o auxílio emergencial a pessoas que foram economicamente mais atingidas pela crise. Ele prevê três pagamentos de R$ 600 ou de R$ 1.200 cada para trabalhadores informais, microempreendedores individuais ou desempregados com renda de familiar de até R$ 3.135 mensais ou com renda familiar por pessoa de R$ 522,50.

O Ministério da Economia estimou em R$ 123,9 bilhões as despesas com o programa desembolsou R$ 56,1 bilhões até agora. A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado calcula que o gasto será maior – de R$ 154,4 bilhões em 2020, e aponta que o número pode aumentar a depender da evolução da situação econômica, em particular se a renda da população piorar por causa da crise.

Os que são contrários ao lockdown, que restringiria a atividade econômica ainda mais do que as atuais políticas de isolamento, usam como um dos argumentos os potenciais efeitos deste tipo de medida sobre a economia.

A equipe econômica do Planalto calcula que, nos moldes atuais, o isolamento social custa R$ 20 bilhões por semana. Somado a isso está à necessidade de esperar 14 dias para que os efeitos reais de qualquer aumento nas restrições seja de fato observável na curva de casos, e de não haver relaxamento imediato destas medidas restritivas para evitar uma segunda onda de contágios.

Os partidários do lockdown alegam que os países que adotaram este tipo de medida já começaram a liberar a circulação de pessoas, abrindo espaço para a recuperação da economia depois de um período intenso de contração da atividade.

TRATAMENTO DE LONGO PRAZO

Os especialistas econômicos avaliam que o mais importante no médio prazo será garantir que as despesas relacionadas à contenção da covid-19 fiquem restritos a 2020 e que o governo sinalize que, eventualmente, voltará a buscar a redução do endividamento e reformas que aumentem o potencial de crescimento.

Para Flávio Serrano, economista-chefe do Haitong, o dinheiro que o governo está transferindo à população é importantes no curto prazo para sustentar a renda e evitar um colapso econômico que diminua a produtividade, mas é preciso retomar assim que possível a agenda de reformas econômicas, de forma a compensar uma parte da deterioração no quadro fiscal.

“Somente o gasto de sustentação a renda que é emergencial custa de um quarto a um terço da arrecadação impostos que o Brasil tem. Isso não pode perdurar senão vai ter um déficit fora do controle”, disse ele.

“Se avançar na agenda de reformas, limitar os gastos excepcionais, melhorar a competitividade com reformas como a tributária e administrativa, isso pode mitigar parte dos efeitos”, disse ele, referindo-se à percepção de que, com o aumento dos gastos públicos, a dívida tamtém cresce, piorando a perspectiva de crescimento econômico.

“Basicamente tem que garantir o cumprimento da lei de responsabilidade fiscal, o teto dos gastos, que já é um instrumento para evitar essa dinâmica do aumento de gastos, tem a regra de ouro e outros instrumentos que protegem a sociedade de um descontrole dos gastos públicos isso”, disse Serrano.

Fábio Klein, consultor econômico sênior da Tendências Consultoria, compartilha da visão de Serrano e acrescenta que outro fator importante para a economia é “parar com os ruídos políticos”. “A discussão agora não é retomar a economia, o objetivo agora é reduzir prejuízos. Por isso que o ideal do governo é focar na saúde e na economia, fazer programas emergenciais de compensação dos prejuízos que vão existir, mas podem ser reduzidos quanto mais eficaz for o governo na emergência.” Ele acrescentou que se for necessário estender os programas de ajuda à população, a situação fiscal brasileira sofrerá uma deterioração significativa que poderá prejudicar o crescimento por um longo período.

“Em vez de se ter uma dívida que no cenário básico será por três, quatro anos, de por volta de 90% do PIB, traria uma que estaria batendo quase em 100%. Se 90% é bem ruim, imagina 100%? E mesmo que seja algo mais pontual, mas mais longo, entraríamos em 2021 comprometidos. Aí cresce pouco e o endividamento aumenta. Isso alimenta a percepção de risco, que vai aumentando continuamente.” “Se aumenta o risco o processo de recuperação vai ser mais dificultado, e isso começa a dificultar a capacidade de sobrevivência das empresas, do mercado de trabalho e entra em um circulo vicioso ruim. O governo pode sofrer dificuldades de se financiar. Quando a crise começa a ficar mais longa compromete a retomada lá na frente”, avaliou.

POSIÇÃO OFICIAL

O líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), considera que o Brasil ainda está tentando lidar com a pandemia da melhor forma possível. “Ninguém ainda tem dados científicos sobre pressão do prazo da pandemia, dos efeitos mais agudos”, disse ele à Agência CMA.

“É auto-explicativo: é pandemia e é total a pressão desse momento. A gente tem que tentar se preparar com muita compreensão, com muito trabalho duro, porque ninguém sabe o que vai acontecer”

Ele reconheceu que, se houver necessidade, os gastos do governo com a contenção dos danos causados pela covid-19 precisarão ser maiores e que isso pode acontecer se as atividades econômicas continuarem sofrendo restrições. “Se você estica a paralisia da economia as consequências são inevitáveis e a gente tem que conviver com isso. Não é uma ação que gera algum culpado, vem da pandemia mesmo e a gente vai tentar o mais rápido possível sair desse buraco.”