São Paulo – O fim do auxílio emergencial neste ano deve resultar em um impacto muito negativo na economia em 2021, especialmente se o governo fracassar na tentativa de fortalecer o Bolsa Família ou na formulação de um programa capaz de evitar o penhasco fiscal que se aproxima, segundo especialistas consultados pela Agência CMA.
O auxílio emergencial foi uma política introduzida pelo governo federal para garantir uma renda básica às camadas mais pobres da população durante a pandemia de covid-19. Isto porque, para evitar um aumento muito rápido no número de pessoas infectadas, várias empresas foram obrigadas a permanecer fechadas e houve redução na circulação de pessoas, o que inviabilizou o trabalho de milhões de brasileiros.
O benefício foi aprovado pelo Congresso em março e sancionado pelo presidente no mês seguinte. O governo se dispôs a pagar cinco parcelas mensais de R$ 600 para os beneficiários e, posteriormente, autorizou um grupo mais restrito deles a receber R$ 300 mensais até o final do ano.
Apesar dos valores relativamente baixos – o salário mínimo atualmente é de R$ 1.045 por mês -, dados apontam que o programa conseguiu evitar uma piora mais drástica da economia. Embora no trimestre até julho o desemprego tenha atingido 13,8% da população – o pior índice da série histórica iniciada em 2012 -, um estudo da FGV publicado naquele mês apontou que, para a maioria dos que receberam o auxílio emergencial, a ajuda financeira superou a perda de renda.
“O impacto é muito grande. Hoje já temos os dados e as análises de que cerca de 60 milhões de pessoas foram atingidas pelo auxílio, e que realmente está fazendo diferença tanto na sobrevivência destas famílias e também economicamente – há contribuição desses milhões de pessoas na economia através do consumo”, disse Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.
Como os próprios autores do estudo da FGV destacam, porém, “isso não significa que o auxílio emergencial seja excessivo, mas sim que o nível de pobreza e desigualdade do Brasil é muito alto”. E, embora haja sinais de que a economia está se recuperando – como a criação de 380 mil empregos desde julho – o fim do auxílio no ano que vem significar que a economia deve derrapar na primeira metade de 2021, especialmente sem um colchão de renda mais grosso que o proporcionado pelos programas sociais tradicionais.
Marcelo Neri, diretor do FGV Social, acredita que os primeiros efeitos da remoção do auxílio serão percebidos ainda este ano, por causa da diminuição das parcelas finais do benefício. “O auxílio mais do que compensou esse recorde negativo no mercado de trabalho, gerou um recorde positivo em termos de baixa desigualdade, baixa pobreza, e isso ajuda as rodas da economia a girar.”
“A gente vive agora a primeira transição. A pobreza vai começar a aumentar a partir dessa redução à metade [no valor do auxílio]”, disse ele, acrescentando que a recuperação da atividade vai parecer mais “uma raiz quadrada do que um ‘V’”.
O economista e professor do núcleo de pesquisas em políticas públicas da UNB, Newton Marques, considera que o fim do auxílio emergencial na prática equivale à redução do poder de compra da classe mais baixa. “Com isso, [deve haver] uma redução do consumo dos produtos mais essenciais, como alimentos, reduzindo a pressão sobre os preços. As pessoas estão comendo com esses recursos. O fim causaria uma demora maior na reativação da atividade.”
PRESSÃO FISCAL
O orçamento previsto para o auxílio emergencial é de R$ 322 bilhões. Para fins de comparação, os recursos seriam suficientes para pagar o Bolsa Família por aproximadamente 10 anos. É justamente esta discrepância que deslocou o foco do governo para a necessidade de um “pouso suave” do auxílio no ano que vem, capaz de evitar uma redução brusca nos gastos públicos.
Até agora, foram desembolsados R$ 237 bilhões dos recursos previstos para o auxílio emergencial, o que significa que ainda há dinheiro sendo injetado “na veia” da população mais pobre, como disse recentemente o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Nem todos os recursos serão gastos até 31 de dezembro, quando o auxílio terminará oficialmente, porque os critérios de pagamento das parcelas finais são mais restritivos e, além disso, não há compromisso de desembolso de valores por um período específico, como na primeira fase. Isto significa que algumas pessoas receberão mais parcelas de R$ 300 do que outras.
Essa sobra no orçamento, porém, não poderá ser aproveitada pelo governo no ano que vem, porque em 2021 serão retomadas as regras que limitam as despesas públicas. Essa limitação impõe um desafio ao governo, que precisará encontrar uma forma de financiar o período de transição do auxílio emergencial sem recorrer a aumento da dívida.
A equipe econômica chegou a desenhar um programa chamado Renda Brasil que juntaria 27 programas sociais em um só, e cujo foco seria garantir um pagamento mínimo a pessoas em situação de pobreza e proteger a primeira infância. A proposta não chegou a ser formalizada porque parou no presidente Jair Bolsonaro. Ele foi contra a ideia por acreditar que ela retirava dinheiro “dos pobres para dar aos paupérrimos”.
No final de setembro, o governo e seus aliados no Congresso apresentaram um plano B – um programa chamado de Renda Cidadã, que encamparia e ampliaria o Bolsa Família. Desta vez, quem vetou o projeto foi o mercado financeiro.
Os investidores não gostaram de ouvir que, além dos R$ 35 bilhões do Bolsa Família, o Renda Cidadã contaria com R$ 39 bilhões desviados do pagamento de dívidas judiciais da União – os chamados precatórios – e com quase R$ 1 bilhão de um fundo destinado à educação que foge do limite do teto de gastos. Posteriormente, o Ministério da Economia minimizou a proposta, e o secretário de Previdência, Bruno Bianco, disse que não se pode levar “a ferro e fogo” nenhum plano apresentado.
Na prática, o problema continua, e o governo – amplamente endividado – terá de encontrar um caminho capaz de, ao mesmo tempo, garantir a tranquilidade dos investidores (para não elevar o custo da rolagem da dívida), evitar uma parada brusca da recuperação (com um programa social suficientemente robusto) e evitar ser acusado de ter feito pouco (o que pode fazer evaporar o apoio conquistado por Bolsonaro durante a pandemia).
POTENCIAIS SAÍDAS
Para os especialistas, há dois pontos importantes nesta discussão. O primeiro é a necessidade de se respeitar os limites fiscais previstos em lei, e o segundo é aprovar uma estrutura de financiamento que efetivamente resulte numa transferência de renda do grupo mais rico da população para o mais pobre – algo intimamente ligado a mudanças na estrutura de impostos e em um potencial sacrifício por parte da elite do funcionalismo público.
“É muito difícil pensar construção de um programa de renda básica que não esteja vinculado a uma discussão tributária. Tem um problema de recursos neste país, e este problema de recursos está muito vinculado ao sistema tributário injusto”, disse Maia.
“As iniciativas do governo em relação à reforma tributária são focadas em simplificação. Não se enviou nada robusto para mexer no 1% mais rico deste país. Não se enviou absolutamente nada robusto para que seja discutido no Congresso Nacional. A discussão de onde vem o dinheiro é muito importante.”
A diretora da Oxfam Brasil disse que a lógica de que não é possível tirar dinheiro dos pobres para dar aos paupérrimos, usada por Bolsonaro para vetar o Renda Brasil, “é boa, mas tem que ter uma continuidade”.
“Não se pode tirar dos pobres para os paupérrimos e deve-se tirar dos muito ricos para os que precisam. A frase dele mostra que o governo dele está discutindo saídas econômicas para poder bancar o programa, mas o governo dele tem orientação de só focar em retirar direitos e gastos sociais”.
Guedes chegou a dizer que o governo apresentaria medidas para taxar os dividendos pagos a pessoas físicas – uma forma de capturar o dinheiro que flui à parcela da população que está mais perto do topo da pirâmide de renda -, mas não vinculou isso ao financiamento de um novo programa social. Em vez disso, afirmou que a intenção era diminuir a carga tributária aplicada às empresas.
Neri ressalta que a parte social do orçamento virou parte do debate financeiro principalmente por causa da pandemia, mas sem as proteções que outras despesas públicas possuem. “A assistência social está debaixo do teto e não tem nenhum piso. Ela tem teto, coisa que educação e saúde não têm, e não tem piso constitucional – não tem o salário mínimo, a pensão que não pode ser diminuída. Acaba sendo variável de ajuste. Mas na verdade é uma despesa pequena comparada ao auxílio e comparada à Previdência.”
Ele afirma que o substituto do auxílio emergencial teria várias outras formas de financiamento se houvesse um consenso da sociedade a respeito da gravidade da situação econômica e do que é preciso fazer para corrigi-la – algo que foi atingido até certo ponto com as medidas de suspensão e redução de jornada dos trabalhadores.
“O mercado de trabalho está no inferno, as pessoas acham que estão no céu, vão ter que botar o pé na terra. A pobreza vai aumentar. Esse ganho de 13 milhões [de pessoas que saíram da pobreza], as pessoas vão voltar à pobreza. A questão é: vão ser acompanhadas de quantos outros?”
Ele citou como possíveis fontes de financiamento a redução dos salários de servidores públicos e de isenções tributárias, o aumento de impostos, a adoção de uma cobrança progressiva de tributos, a unificação de programas sociais e inclusive o congelamento do salário mínimo – uma possibilidade que chegou a circular no Planalto, mas foi vetada por Bolsonaro.
“No imaginário do brasileiro [o salário mínimo] é a política social. E é mesmo, mas cada real que dá de reajuste ali tem efeito em todo o tabuleiro. Mexe em todas as peças, menos no Bolsa Família.”
A adoção do imposto sobre transações financeiras, proposta defendida por Guedes para desonerar a folha de pagamentos, seria uma outra opção para garantir a transição do auxílio emergencial, segundo Marques.
“Do ponto de vista fiscal, continuar o auxílio significaria agravar ainda mais o problema, teria que achar uma saída para financiar isso. Outra saída seria esse imposto sobre transações financeiras, e aí ter uma saída e devolver esse imposto para o mais pobre. Inicialmente, o imposto irá pegar todos, mas isso seria devolvido ao mais pobre por algum mecanismo engenhoso que teria que ser desenvolvido.”
NOVA FÓRMULA
Outro consenso dos especialistas é de que seria mais vantajoso turbinar o Bolsa Família, que tem eficácia comprovada na redução da pobreza extrema e uma boa relação entre custo e benefício, do que bolar um novo programa de assistência social do zero, com mecânicas que ainda não foram testadas ou que são menos universais que as atuais, ou ampliar outros programas menos eficientes.
Segundo Neri, cada real destinado ao Bolsa Família gera R$ 1,78 na economia – mais do que outros auxílios prestados pelo governo, como o do Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e pessoas com deficiência, cujo multiplicador é de 1,2. Isso porque o Bolsa Família é desenhado especificamente para chegar aos mais pobres. Ainda assim, o valor médio do Bolsa Família é de pouco menos de R$ 200 mensais, enquanto o do BPC equivale ao salário mínimo (R$ 1.045).
“Eu não sou daqueles que acreditam em renda básica universal, renda para todo mundo. Eu não acho que o céu seja o limite”, disse o diretor do FGV Social. “Se a gente tiver como métrica o mais pobre dos pobres, ele é o [melhor] programa”, afirmou.
Maia, da Oxfam, considera que “é o momento de a gente priorizar as melhorias que podem ser feitas no Bolsa Família, e aí estamos falando de alcance. Não dá para continuar entre 13 milhões e 14 milhões de famílias, porque a necessidade das pessoas em situação de pobreza, esse número vai aumentar significativamente”.
Hoje o Bolsa Família é voltado para pessoas cuja renda familiar mensal é de até R$ 178 por pessoa. Para Maia, este teto poderia ser maior para que mais pessoas pudessem ser incorporadas. Uma outra alteração importante deveria ser feita no valor do benefício, segundo ela.
“Hoje o Bolsa Família tem máximo de R$ 200 para cinco pessoas. Isso não tem condições. Precisa começar a pensar no valor individual, aumentar esse valor em função dos indivíduos da família. Hoje a gente tem um auxílio emergencial que começou com R$ 600, caiu para R$ 300. A gente deveria pensar que 600 é o mínimo do mínimo. É um pouco mais da metade do salário mínimo.”