São Paulo – A queda da taxa básica de juros (Selic) em direção às mínimas históricas de um dígito provocou uma mudança no perfil do mercado financeiro brasileiro, com os recursos aplicados em renda fixa buscando maior rentabilidade em ativos mais arriscados. E essa evolução na indústria dos fundos de investimento no Brasil também tem reflexos na economia real, com o mercado de capitais ganhando papel de destaque.
“Dada a queda dos juros básicos, o mercado financeiro brasileiro recebeu uma enxurrada de dinheiro, criando um mercado de capitais mais ágil no país”, explica o economista-chefe da Necton Investimentos, André Perfeito. Segundo ele, esse apetite em busca de maior retorno força o investimento em diversos canais, inclusive na atividade.
“O aumento significativo dos aportes na indústria de fundos, derivado da queda da taxa de juros, e a redução de custo de capital das empresas, tanto da mão de obra quanto financeiros, irão puxar, principalmente, os investimentos”, avalia Perfeito, que revisou a previsão de alta do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, de 2,2% para 3%.
Neste processo, o crescimento econômico vem da alocação de capital feita diretamente pelos investidores e pelas empresas para estimular a atividade, com projetos de infraestrutura e de ampliação de produção ficando atraentes.
Perfeito destaca também a importância da flexibilização das leis trabalhistas e a introdução de novas tecnologias, visando aumentar a produtividade.
Já o economista-chefe da Infinity Asset, Jason Vieira, realça o papel de destaque do Banco Central nessa revolução monetária. “Esse admirável mundo novo é tudo ‘culpa’ do que o BC criou. A nova era dos juros baixos é um dos principais pontos capazes de alterar distorções no mercado, de maneira natural.”
Vieira cita a redução do spread bancário e a agenda do BC de reformas microeconômicas, atuando desde os juros do cheque especial e as tarifas de serviços até o apoio às fintechs. “Criou-se uma concorrência do crédito e estimulou-se o papel do banco público, pois não se esperava que os bancos iriam baixar os juros como uma atitude nobre, por boa vontade.”
NOVA ERA, NOVA CULTURA
No âmbito do mercado financeiro, o sócio-gestor da Criteria Investimentos, Vitor Miziara, avalia que as carteiras de investimentos precisaram ser repensadas e otimizadas para refletir a nova era de juros baixos. Ele destaca o fato de o juro real, que é a taxa de juros nominal (Selic) descontada a inflação projetada em 12 meses, também estar na mínima histórica.
“Isso é importante para saber o quanto, de fato, o investimento está rendendo. Para isso, é preciso descontar a desvalorização do dinheiro no tempo, que é a inflação. Ou seja, dependendo do investimento, o dinheiro pode até estar perdendo valor ao longo tempo”, observa.
Miziara avalia que esse fenômeno no Brasil está apenas começando e tende a se transformar em um caráter cultural, diante a perspectiva de que os juros básicos seguirão baixos por algum tempo. “Nos Estados Unidos, o juro real quase sempre foi próximo a zero. Ou seja, ou você gasta ou investe em ativos de risco. E é esse cenário que está começando a aparecer por aqui”, prevê.
Na mesma linha, o diretor da tesouraria de um banco estrangeiro avalia que a migração de recursos de investidores e instituições locais da renda fixa para a renda variável, que começou no ano passado, ainda não acabou. “Essa grande rotação tende a continuar, o que não deixa a Bolsa se afastar muito do pico, apesar da aversão global ao risco por causa da história do vírus”, diz.
Para ele, após décadas de altas taxas de juros no Brasil financiando o capital financeiro, o principal argumento para investir em ações é a lucratividade das empresas, embora ainda se encontre boas opções em títulos públicos, principalmente naqueles vinculados à inflação (NTN-B). “A popularidade da Bolsa entre os investidores locais aumentou muito e até agora essa forte alocação tem compensado os enormes fluxos de saída para o exterior”, observa.
Ele se refere à retirada recorde de quase US$ 45 bilhões do país no ano passado, conforme dados do BC. Segundo o diretor, a queda da taxa básica de juros à mínima histórica foi um dos principais fatores que levaram a essa saída. “Com juros mais baixos, investidores estrangeiros que ganhavam dinheiro fácil aqui retiraram seus dólares de aplicações no Brasil e partiram para outros destinos, ainda mais agora em momentos de incerteza”, explica.
TEM LIMITE
E é justamente pelo fato de existirem duas percepções antagônicas sobre o Brasil – uma local, otimista e outra externa, mais pessimista – que existem dúvidas quanto à sustentabilidade desse apetite por ativos domésticos e aos reflexos na atividade real. “O impacto me parece ser superestimado”, avalia o chefe da mesa de derivativos de uma corretora estrangeira.
Para ele, a evolução da indústria de fundos de investimentos no país pode sim levar a uma aceleração do crescimento econômico neste e, quiçá, no próximo ano. “Para mim, isso já explica a estimativa de alta de 2% do PIB em 2020”, pondera.
Segundo o profissional, os aportes externos chegariam via operações envolvendo ações (IPOs, OPAs, follow-on etc.), até alcançarem a atividade.
“Com mais captação [pelas empresas] e mais alocação [de recursos externos], tem-se mais investimentos, mais produção”, explica, acrescentando que o capital local [institucional e de pessoa física] também entra nessa conta.
Contudo, um operador sênior de derivativos de um banco nacional avalia que esse movimento em direção à economia real é limitado. “Não só tem limite como também apenas se sustenta no curtíssimo prazo. Não se trata de um crescimento estrutural”, ressalta. Segundo ele, o mesmo se pode dizer em relação ao mercado financeiro doméstico, que está cada vez mais concentrado, uma vez que os “gringos” viraram coadjuvantes.
“O mercado hoje está na mão de uns 20 [gestores]. Desses, mais ou menos uns 70% dos agentes autônomos [de investimentos] estão em um mesmo lugar. Isso é quase que um setor bancário. Vira um multiplicador de ordem [de compra ou venda de ação]. Enquanto der certo, tudo bem, vão continuar investindo sem olhar risco. Mas, quando se olhar para o risco, vai faltar papel para vender”, ressalta o profissional.
NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAIS
A questão é que o Banco Central criou uma situação inédita no país, ao colocar a Selic no chão, e a mudança estrutural que desloca a oferta (e não a demanda), recompondo o perfil econômico do Brasil, ainda está em curso. “A ausência de parâmetro para o momento que estamos vivendo levanta dúvidas quanto à sustentabilidade desse processo”, afirma Vieira, da Infinity.
Da mesma forma, o economista da Necton lembra que o crescimento econômico vindo primordialmente da alocação de capital feita pelo setor privado é algo que nunca ocorreu no Brasil. “A sustentabilidade vai depender do que o governo e a equipe econômica vão conseguir transformar na economia com esse impulso.
Vai depender da evolução da agenda de reformas”, pondera. “Então, ainda é inconclusivo”, conclui Perfeito.