Tensões diplomáticas deixam Brasil para trás no combate à pandemia

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São Paulo – Os atrasos no envio ao Brasil pela China e pela Índia de matérias-primas para a produção de vacinas contra a covid-19, bem como de doses finalizadas, são sinais de como tensões diplomáticas podem impactar no combate à pandemia, e mostram como Brasília ficou para trás nessa luta, de acordo com especialistas consultados pela Agência CMA.

“O Brasil hoje não é uma prioridade na diplomacia da vacina, nem para a China, nem para a Índia. Elas concentram seus esforços em sua vizinhança, em nações que lhes são próximas”, disse o chefe do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Maurício Santoro.

“Em contraste, o Brasil descuidou dessas relações, preferindo em vez disso a busca de uma relação especial com os Estados Unidos”, acrescentou.

Segundo ele, as vacinas e outros insumos médicos fundamentais no combate à pandemia se tornaram os bens mais disputados do mundo. “Os problemas brasileiros nesse diálogo não foram retaliações diplomáticas, mas representam o quanto o país ficou para trás”, afirmou Santoro.

Em janeiro, o Brasil ficou de fora da lista de países para os quais a Índia exportou a primeira leva de vacinas contra covid-19, e em março foi anunciado um atraso no envio de doses do imunizante da Oxford pelo Serum Institute of India, o maior fabricante de vacinas do mundo.

Na semana passada, um atraso na entrega de suprimentos vindos da China levou o instituto Butantan a interromper o processo de envase da CoronaVac pela segunda vez este ano. A China fornece ao Brasil insumos para a produção da CoronaVac e da vacina de Oxford, produzida pela Fiocruz.

O atraso veio após o presidente Jair Bolsonaro sugerir que o novo coronavírus pode ter nascido em laboratório, e questionar se não estamos enfrentando uma guerra química, sem mencionar a China diretamente.

Para o professor dos cursos de Economia e de Relações Internacionais da FAAP, Vinicius Rodrigues Vieira, ainda que a origem do vírus seja uma história mal contada, as declarações do presidente brasileiro são de extrema gravidade.

“Não vamos ganhar nada apontando o dedo para a China neste atual momento, não estamos em condições de fazer isso, e a prioridade é outra, é salvar vidas”, disse ele. “Nós dependemos da China. É contraproducente e irresponsável, eu diria, a atitude do presidente Bolsonaro”, acrescentou.

MUDANÇA DE RUMO

Segundo Santoro, Uerj, podemos esperar alterações no rumo da diplomacia brasileira, na medida em que a demissão do chanceler Ernesto Araújo e a ascensão do novo ministro de Relações Internacionais, o embaixador Carlos Alberto França, já sinalizam uma mudança significativa.

“O discurso anti-globalista agressivo foi abandonado e o Itamaraty voltou a falar com uma linguagem diplomática tradicional. O novo chanceler tem indicado seu desejo de restaurar as boas relações com os principais parceiros comerciais e políticos do país, que foram muito fragilizadas nos últimos anos”, disse.

Para Vieira, da FAAP, França busca dar mais profissionalismo, retornando à tradição da diplomacia brasileira, mas o presidente Bolsonaro não dá sinais de que pretende alterar a condução de sua política internacional. “Não vejo mudanças substantivas”, na diplomacia brasileira, afirmou o professor.

“Bolsonaro decidiu ser ideológico, e a política externa é uma das áreas que mais imprimiu vontades de sua base”, de acordo com Vieira. “O erro é de antes da pandemia”, disse ele, acrescentando que é necessária uma política de Estado, conduzida com base em valores de longo prazo.

APOIO INTERNACIONAL

A Índia e o Brasil protagonizam o cenário global na severidade da pandemia de covid-19. A Índia é o segundo país do mundo com mais casos da doença, com cerca de 22 milhões infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, com 32 milhões, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

O Brasil vem em terceiro lugar, com 15 milhões de contaminações, mas supera a Índia em número de mortes – são 425 mil óbitos ante 250 mil do país asiático. As duas nações, porém, não tem recebido a mesma atenção da comunidade internacional.

“Há um contraste marcante – e doloroso – na solidariedade internacional à Índia com a ausência de algo semelhante para o Brasil”, disse Santoro, Uerj. “A Índia é um país que hoje é muito mais importante na ordem global, sobretudo como um aliado do Ocidente frente à ascensão chinesa”.

Além disso, explicou Santoro, a escala da pandemia indiana é outra, com os riscos sanitários para um país de mais de 1 bilhão de habitantes com bolsões expressivos de miséria.

“A situação da Índia é mais grave do que a no Brasil”, afirmou Vieira, da FAAP, acrescentando que o país asiático possui uma grande densidade populacional. A Índia tem reportado há semanas um avanço de mais de 300 mil casos por dia, enquanto a alta diária no Brasil está na faixa de 70 mil.

Segundo Vieira, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, tem muitas similaridades como o presidente Bolsonaro, na medida em que ambos são tidos como líderes populistas de direita, ou até mesmo de extrema-direita, e pesam sobre Modi acusações de violações de direitos humanos.

“Modi é tratado de forma mais leniente pela comunidade internacional do que hoje é o presidente Bolsonaro”, disse Viera. Ele lembrou que a Índia é um grande fornecedor de produtos farmacêuticos, além de um ator geopolítico muito mais relevante que o Brasil, levando o país a receber muito mais atenção internacional.

A nova onda de contaminações tem levado o sistema de saúde indiano ao colapso, com escassez de oxigênio, suprimentos médicos e equipe hospitalar. Os Estados Unidos prometeram enviar mais de US$ 100 milhões em ajuda médica, além dos esforços da China, do Reino Unido e da União Europeia.

Por outro lado, o governo do presidente norte-americano, Joe Biden, negocia o envio de US$ 20 milhões ao Brasil, em especial em medicamentos para intubação. Na semana passada, Biden disse que está disposto a trabalhar tanto com a Índia quanto com o Brasil.

“Neste momento, no entanto, entendemos que a Índia precisa mais da nossa ajuda, por isso, estamos enviando equipamentos médicos e outros suprimentos para ajudá-los”, disse o presidente norte-americano na ocasião.